Roraimense de 39 anos é somente a terceira mulher a presidir a entidade desde 1969 e fala sobre os desafios de uma vida toda dedicada à ciência e as metas a serem alcançadas em seu mandato
Em agosto de 2023, Jaqueline Godoy Mesquita foi eleita a 20ª Presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) para um mandato que expira daqui a seis meses. Ela se tornou apenas a terceira mulher a ocupar o cargo principal de uma das maiores sociedades científicas do continente. Fundada em 1969, a entidade só havia ficado em mãos femininas sob a batuta das célebres professoras Keti Tenemblat, nas décadas de 1980 e 1990, e Suely Druck, em mandatos consecutivos no início dos anos 2000.
Até julho, Jaqueline terá suas atribuições respaldadas pelo Vice-Presidente Daniel Pellegrino e sua diretoria, composta por Roberto Imbuzeiro, Maria Aparecida Soares Ruas, Paolo Piccione e Valéria Cavalcanti. Mais jovem a ocupar o cargo, a matemática de 39 anos também é a primeira cientista da região Norte a chegar ao cargo mais alto da SBM.
Nascida em Boa Vista, a macuxi precisou superar dezenas de adversidades no meio do caminho, especialmente o preconceito ligado à questão de gênero. “Uma mulher jovem sendo bem-sucedida na ciência certamente é um fato que não se vê frequentemente. E tudo que é novo incomoda”, opina Jaqueline.
A roraimense concluiu a Licenciatura em Matemática na Universidade de Brasília (UnB) em 2007. No mesmo ano, Jaqueline ingressou no mestrado no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, onde também concluiu o doutorado, em 2012.
De 2012 a 2023, ela completou três pós-doutorados – na USP São Carlos, na Universidade de Santiago de Chile (USACH) e na Justus Liebig-Universität Gießen (JLU), na Alemanha. Em julho de 2023, conquistou sua livre-docência no ICMC-USP. Jaqueline também coleciona diversos prêmios e honrarias em seu currículo. Em 2019, ganhou o prêmio “Para Mulheres na Ciência” da L’Oréal, UNESCO e Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Em 2023, ganhou o prêmio internacional “Science, She Says” Award concedido pelo Ministério das Relações Exteriores da Itália. Neste mesmo ano, recebeu o título de Cavaleira da Ordem da Estrela da Itália e conquistou o prêmio da FAPDF para pesquisadora destaque do Distrito Federal. Em 2024, vieram o prêmio Alumni da USP e a “Mención Destacada” por ser uma das jovens matemáticas da América Latina mais destacadas do ano.
Hoje, Jaqueline é referência nacional na área de Análise Matemática. Sua linha de pesquisa com ênfase em equações diferenciais funcionais com retardamento é ainda pouco explorada dentro da Matemática e tornou Jaqueline uma das pioneiras no desenvolvimento do tema. Mas você sabia que, se dependesse da família, ela tomaria um caminho completamente diferente?
A seguir, você poderá conhecer um pouco mais da Presidente roraimense, que está de ‘casa nova’. Após 10 anos, Jaqueline está se despedindo da UnB para iniciar seus passos em outra das principais instituições de ensino do país como professora titular na Unicamp, que é o último nível da carreira acadêmica. Como ela encara esse novo desafio? Como ela vai conciliar a rotina com suas atribuições na SBM? E, acima de tudo, o que ela projeta para o futuro da entidade após completar seu mandato?
Confira!
Como surgiu o seu interesse pela Matemática? Foi desde criança, foi por influência de alguém da sua família, na escola?
Não me lembro exatamente quando surgiu meu interesse pela Matemática, mas desde criança sempre gostei da disciplina. Eu via a Matemática como um jogo divertido, cheio de enigmas a resolver. Cada vez que acertava uma resposta, era como desvendar um mistério, e isso me trazia grande alegria e satisfação. Meu pai, sendo médico, tinha o desejo de que eu ou minha irmã seguíssemos sua profissão. Minha irmã, no entanto, sempre mostrou talento para as artes, então naturalmente se inclinou para esse campo, enquanto a expectativa para que eu seguisse em Medicina crescia. Porém, nunca me vi como médica e não me entusiasmava com Biologia, exceto por Genética, que envolvia Matemática. Esse conflito me levou a procurar a orientação vocacional, que oscilava entre vários cursos das Humanas e Exatas, sem nunca resolver minhas dúvidas. Cheguei a considerar Psicologia e Comunicação e até busquei conselhos nos centros acadêmicos na UnB durante o meu terceiro ano do ensino médio. No entanto, não conseguia decidir qual seria o curso que gostaria de fazer por toda minha vida. Também, por questões pessoais, passei um período difícil da minha adolescência, tendo depressão. Então minha mãe me afastou da escola por seis meses, o que foi difícil. Durante esse tempo, me dediquei exclusivamente ao estudo de Matemática e Física em um cursinho de específicas que minha mãe me matriculou. Esses estudos se tornaram minha maior alegria e distração, eu passava horas resolvendo exercícios de matemática e física, sem me lembrar de nenhum problema ou dificuldade pessoal.
Ao retornar à escola no ano seguinte, estava decidida entre Matemática e Física, mas após conversar com uma tia que era matemática, optei por seguir a Matemática. A reação inicial dos meus pais foi de surpresa e preocupação, questionando a viabilidade de uma carreira em Matemática em comparação com profissões como Medicina. Com o apoio da minha tia, consegui convencê-los parcialmente, embora durante toda a minha graduação continuassem sugerindo que eu optasse por áreas como Ciência da Computação ou Engenharia. Mesmo com essas pressões, mantive minha escolha, seguindo o caminho que verdadeiramente me apaixonava.
Durante o curso de Licenciatura em Matemática, você chegou a pensar em mudar? Sua tia continuou ‘fazendo a sua’ com seus pais?
Depois que entrei em Matemática, fiquei muito satisfeita, mas ainda assim, tive muitas dúvidas. Na verdade, até para escolher a Licenciatura, eu fiquei com dúvidas. Quando eu entrei no vestibular, a gente fazia a matrícula e tinha as opções de Licenciatura ou Bacharelado. Naquele momento, escolhi a Licenciatura, mas sem muita certeza. Liguei para a minha tia e falei: ‘Tia, eles estão perguntando aqui se eu quero me matricular na Licenciatura ou no Bacharelado’. E minha tia falou: ‘Coloca Licenciatura, que é (opção) para dar aula. Bacharelado, eu não sei o que faz, não’ (risos). Daí lembro que marquei a Licenciatura naquele momento. Nem eu tinha noção do que era, para ser extremamente sincera.
Você é a Presidente mais jovem da história da SBM. Você entende a real dimensão disso? Por acaso, isso te assusta ou ainda te dá mais motivação para trabalhar?
Reconheço a importância de termos jovens como lideranças em nosso país, especialmente no âmbito acadêmico, onde é notoriamente difícil para eles encontrarem espaço. Geralmente, cargos de liderança, como presidências e coordenações, são ocupados por indivíduos mais experientes, os chamados seniores. No entanto, muitos jovens, cheios de energia e entusiasmo, frequentemente não têm essa oportunidade, enfrentando desconfiança quanto à sua maturidade ou preparo. É crucial confiarmos em nossas lideranças jovens e darmos a elas esse voto de confiança. Minha experiência como membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC) reforça o quanto os jovens podem ser protagonistas, responsáveis e cheios de energia, precisando apenas de uma chance para crescer. Quando assumi a presidência da SBM, eu era a mais jovem na história da sociedade, o que trouxe um grande peso de responsabilidade. Havia a pressão de executar bem, não apenas por mim, mas por estar representando todos os jovens da nossa comunidade matemática que almejam um espaço na ciência brasileira. Uma gestão mal sucedida poderia enviar uma mensagem negativa para o futuro. Ser a presidente mais jovem da história da SBM impôs-me a tarefa de honrar os jovens do nosso país e abrir caminho para que outros também possam assumir posições de destaque.
Além disso, você é uma mulher cientista e da região Norte. Você percebe uma evolução no interesse e estrutura para a área no Norte do país?
Ainda há muito a evoluir em relação à estrutura da região Norte, que hoje possui mais recursos do que na época em que nasci, mas ainda assim, o investimento é insuficiente. Considero que esta região continua sub-representada e negligenciada no cenário nacional, o que é paradoxal, dado seu vasto patrimônio natural e cultural. É imperativo incentivar seu desenvolvimento, aumentando o número de bolsas de estudo, aprimorando a infraestrutura e outros aspectos fundamentais. Muitas áreas ainda são de difícil acesso, acessíveis apenas por barco, o que demanda uma atenção especial. A região Norte é crucial para o Brasil e merece ser mais valorizada. Precisamos investir mais na educação superior e na formação de professores, incorporando as intersecções com a cultura indígena e aprendendo com os povos nativos. Dentro da SBM, temos direcionado mais esforços para a região Norte, com iniciativas como o Colóquio de Matemática em Parintins em maio de 2025, a realização da primeira Bienal de Matemática no Pará e a próxima Semana Nacional de Iniciação Científica em Matemática, também no Pará, em agosto deste ano. Estamos comprometidos em desfazer estereótipos e aumentar a visibilidade da região, mostrando sua verdadeira importância e riqueza. É essencial que esses esforços se estendam além da SBM, com o apoio das autoridades públicas para fomentar mais recursos para o Norte.
Você teve a experiência de ser Vice-Presidente na gestão do Paolo Piccione antes de assumir o cargo mais alto. De que maneira a experiência anterior contribuiu para sua bagagem?
A contribuição foi significativa, pois a SBM, apesar de não parecer, é uma entidade de grande porte com numerosas responsabilidades. Isso inclui desde a coordenação nacional do PROFMAT, abrangendo 106 cidades, até ser uma das principais editoras de livros de matemática em português, o que demanda uma logística complexa envolvendo estoque, precificação, impressão e editoração. Além disso, a SBM organiza diversos eventos nacionais e internacionais, gerencia questões associativas e mantém uma equipe de funcionários. Recentemente, também passamos a oferecer cursos, com um foco renovado tanto na pesquisa quanto no ensino básico de Matemática, e em estabelecer acordos de cooperação com outras sociedades científicas. Meu aprendizado como Vice-Presidente foi crucial, fornecendo-me a experiência necessária para assumir a presidência da SBM. Esta nova função transcende a pesquisa e o ensino, exigindo uma abordagem multifacetada. Tenho apreciado muito esta experiência. Não podemos nos limitar apenas à nossa pesquisa e aos avanços em nossos resultados matemáticos; devemos reconhecer a importância de contribuir para a comunidade brasileira e para o fortalecimento da matemática nacional, começando pela base.
Em um ano e meio de mandato como presidente, quais os principais benefícios que enxerga em relação a sua gestão?
Junto à Sociedade Brasileira de Física (SBF), criamos o Programa de Mentorias para Mulheres e, em colaboração com o IMPA e o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), instituímos o prêmio ‘Elas na Matemática’ para aumentar a visibilidade das contribuições femininas na área no país. Também lançamos o Workshop de Mulheres em Matemática e a Semana Nacional de Iniciação Científica, ambos caminhando para suas segundas edições em 2025. Além disso, estabelecemos o prêmio de Iniciação Científica em Matemática, em homenagem ao Professor Hildebrando Munhoz Rodrigues, destacado por seu dedicado trabalho no ICMC. Criamos também a Comissão de Ética e Conduta, e o código de ética e conduta que não existia anteriormente. Isso é muito importante para a nossa comunidade matemática como um todo. Também lançamos a coleção de textos para graduação, com o destaque para o primeiro livro de Cálculo da Sociedade Brasileira de Matemática, que será publicado agora em fevereiro. Adicionalmente, estabelecemos duas comissões cruciais na SBM: a Comissão de Ensino e a Comissão de Ensino de Graduação. Ambas são dedicadas a discutir e abordar questões fundamentais relacionadas ao ensino de matemática em diversos níveis educacionais.
No cenário internacional, realizamos o Encontro Brasil-China em Dongguan em 2024 e, neste ano, sediaremos o Encontro Brasil-México em Fortaleza em setembro. As futuras edições incluem o Encontro Brasil-China no Brasil em 2026 e o segundo Encontro Brasil-Itália em Messina. Em 2027, ocorrerá a segunda edição do Encontro Brasil-França em Paris. Além disso, firmamos diversos acordos de cooperação com sociedades científicas de matemática globais e intensificamos o diálogo nacional com outras sociedades para aumentar ações conjuntas.
Firmamos uma parceria com a Springer para aumentar a visibilidade da revista Matemática Contemporânea e lançamos o Podcast oficial da SBM, oferecendo conteúdos relevantes. Estamos também engajados na proposta de um Doutorado Profissional em Matemática em Rede Nacional, submetido no último ano, com a esperança de sua aprovação contribuir significativamente para a matemática brasileira.
Além disso, temos feito contribuições significativas para a educação básica. Oferecemos treinamentos para professores em parceria com o SESI e organizamos um workshop bem-sucedido para docentes de matemática da educação básica do estado de São Paulo. Também estabelecemos o prêmio Mestrado Profmat, concedido à melhor dissertação de mestrado defendida em cada região do país, e inauguramos o Encontro Nacional do Profmat, uma iniciativa inédita que tem fortalecido a rede de profissionais da área.
A SBM tem expandido sua atuação com diversos eventos e cursos, além de oferecer benefícios aos associados, como plano de saúde e descontos através de parcerias, enriquecendo cada vez mais a experiência de nossos membros.
Por outro lado, quais as principais demandas que você ainda vê como prioridade até o fim do seu mandato?
Estar à frente da SBM apresenta inúmeros desafios. É uma função exigente, contudo, tenho o apoio de uma equipe excepcionalmente qualificada. Com membros dedicados em diferentes setores – desde a diretoria, secretários regionais, equipe editorial, funcionários da SBM, até o Conselho Diretor, Conselho Fiscal, Pró-reitoria e a Coordenação Nacional do PROFMAT. A carga de trabalho é intensa, mas é recompensadora. Estou constantemente aprendendo e encontrando novas maneiras de contribuir.
Neste período que ainda tenho até o fim do mandato, espero expandir ainda mais as parcerias da SBM tanto no cenário nacional quanto internacional, implementando iniciativas significativas para nossa comunidade. Pretendo levar a SBM a diferentes estados do país, fortalecendo a integração da nossa comunidade e aumentando o engajamento com nossas atividades. Além disso, almejo contribuir de maneira mais impactante para a educação básica em matemática, principalmente na formação de professores, e ampliar a internacionalização do Mestrado Profmat através de colaborações com a Coordenação Nacional Acadêmica. São muitos os desafios e perspectivas, mas estou confiante de que, com o apoio do time da SBM, seremos capazes de alcançar todos esses objetivos.
Em 2025, você terá o desafio de trocar a UnB, onde você está instalada há quase dez anos, e rumará para a Unicamp. O que significa essa troca para você? Qual a sua expectativa e por que você escolheu essa mudança?
Estou extremamente animada com minha ida para a Unicamp, especialmente por assumir o cargo de professora titular, o mais elevado na carreira acadêmica. Estou ansiosa para começar a trabalhar lá, cercada de excelentes perspectivas e muitas oportunidades de aprendizado com meus futuros colegas. A Unicamp é uma referência em educação, com programas de pós-graduação robustos e grupos de pesquisa de ponta. Já vivi bastante tempo no estado de São Paulo, então estou entusiasmada com o retorno. Embora não seja exatamente na instituição onde estive anteriormente (ICMC/USP), vejo isso como algo positivo, pois acredito que mudanças de instituição são fundamentais para trazer novas visões críticas e possibilidades de contribuição. Escolhi a Unicamp justamente por estar em uma fase muito boa da minha carreira e pela chance de contribuir em uma das mais prestigiadas universidades do país. Estou curiosa para ver o que o futuro reserva nesse novo capítulo da minha história.
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