Assédio moral, inclusão universitária e maternidade são alguns dos temas tratados pelas professoras na iniciativa que visa o empoderamento de jovens profissionais na área científica

“Quanto mais somos, mais fortalecida é a nossa rede”. É dessa forma entusiasmada que Valéria Neves Domingos Cavalcanti, destaca a entrada da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) no Programa de Mentorias para Mulheres ao lado das Sociedades Brasileiras de Matemática (SBM) e Física (SBF). Valéria é a Coordenadora da ação.
Em vigor desde 2023, o Programa de Mentorias para Mulheres SBM/SBF/SBQ tem por objetivo empoderar jovens mulheres no início de suas carreiras para lidarem com os vários desafios em suas carreiras acadêmicas. Durante os dois primeiros anos, apenas com matemáticas e físicas, o projeto conseguiu cumprir vários propósitos e ajudou dezenas de pesquisadoras a combater desafios multifacetados e que refletem uma combinação de questões sociais, culturais e estruturais.
Com a entrada da SBQ, o programa ganha em representatividade feminina em um âmbito ainda mais amplo na área de Ciências Exatas. “O slogan do Programa de Mentorias para Mulheres é: ‘Somos todas maravilhosas’. Porque é exatamente sobre isso. Nós temos agora a Química com a gente que nos traz muita alegria e, quanto mais somos, mais somos maravilhosas e fortalecidas juntas”, completa Valéria, professora de Matemática da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e integrante da atual Diretoria da SBM.
SBQ terá mentoras a partir da 2ª edição
Uma das grandes responsáveis pelo ingresso da SBQ na organização junto de SBM e SBF foi a professora Taicia Pacheco Fill, vice-chefe do Departamento de Química Orgânica da Unicamp. Ao lado de Luana Forezi e Ana Paula Paim, ela coordena o Núcleo Mulheres da entidade, o qual já realiza ações a favor da igualdade de gênero dentro da Química.
Taicia foi uma das palestrantes no Programa de Mentorias e, em contato com várias integrantes do programa, se apaixonou pela proposta.
“Foi ótimo falar um pouco sobre o cenário feminino na Química e sobre minha trajetória acadêmica. Eu não conhecia o programa e fiquei maravilhada com a proposta da SBM e a SBF. Pude conhecer Mentoras e Mentorandas e formamos um vínculo muito legal”, conta a professora, referência nacional no segmento de Ecologia Orgânica.

A partir do contato inicial de Taicia com o programa, a SBQ abraçou a causa e passou a integrar o time de organização do programa. A professora da Unicamp vai participar da coordenação, ao lado de Valéria e mais pesquisadoras, e projeta contribuir futuramente também como Mentora.
“Temos as mesmas ambições por um cenário de mais equidade e permanência das mulheres nas áreas STEM e, juntas, poderíamos fazer ainda mais e tornar o programa ainda maior e com mais visibilidade. Nosso maior foco é tornar o programa uma bandeira da SBQ, dar vida e visibilidade, e consolidar ao longo do tempo para que possamos ajudar cada vez mais mulheres na carreira científica”, destaca Taicia, vencedora, em 2019, do prêmio Para Mulheres na Ciência, concedido pela L’Oréal, na categoria ‘Ciências Químicas’.
Principais “queixas” dos primeiros anos para as Mentoras
É inegável que, ao longo dos dois primeiros anos do programa, várias queixas chegaram às Mentoras da Matemática e da Física. Desigualdade de gênero, falta de representatividade, discriminação, assédio moral e sexual, falta de apoio institucional, dificuldades de aliar a vida acadêmica com a maternidade, tudo isso foi ouvido pela equipe de professoras de todo o Brasil.
Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Denise de Siqueira revela que os primeiros anos foram de muito aprendizado, tanto para as Mentoras quanto para as Mentorandas. Entretanto, foi notório o quanto as jovens pesquisadoras se sentiram acolhidas, especialmente em um momento-chave de suas carreiras.
“Havia várias Mentorandas que tinham acabado o doutorado, estavam no que a gente chama de ‘limbo’. Então, não tinham conseguido ainda uma posição, seja numa universidade ou com um trabalho. E foi legal ver a evolução delas em construir essa autoconfiança, em se abrirem com as Mentoras e saber todas as possibilidades. Se há uma palavra que poderia dizer sobre o programa, é o acolhimento às demandas específicas das mulheres”, conta a membra do Comitê das Mulheres na Matemática Aplicada e Computacional e Computacional da SBMAC.

A maternidade pode ser desafiadora para as pesquisadoras por diversos fatores, sendo um dos principais a conciliação entre as responsabilidades acadêmicas e familiares. Segundo relata Denise, o tema é um dos mais citados pelas Mentorandas, principalmente porque falhar na organização das atividades pode colocar sua carreira em risco.
“A maternidade passa a ser um momento de medo, insegurança e não deveria ser. Deveria ser um momento de muita alegria. E acontece justamente por conta da pressão que algumas mulheres sentem nesse sentido, né? Maternidade, carreira, são, de fato, quesitos bem delicados. Foram quesitos delicados quando a gente tratou disso na Mentoria”, confirma ela, que também integrou a Comissão de Gênero e Diversidade de SBM e SBMAC.
Sua colega na UTFPR, Rozane de Fátima Turchiello Gomez também fez parte da equipe de Mentoras da 1ª edição e compartilha que a iniciativa é fundamental para pós-graduandas em Ciências Exatas. Comentar sobre as experiências fez até a professora de Física puxar da memória uma situação em que passou por dificuldades na época de sua formação.

“Olhando para o passado, vejo que houve avanços significativos, principalmente em relação à licença-maternidade. No meu caso, tive uma gravidez gemelar durante o Pós-Doutorado e precisei trancar a bolsa em dois momentos distintos por questões de saúde, ficando, na época, sem nenhuma remuneração e sem extensão de prazo. Por ter uma formação em uma área de predominância masculina, que é a Física, entendo que programas como esse são extremamente necessários para oferecer suporte e acompanhamento às alunas da Pós-Graduação em diferentes níveis de formação”, defende a docente.
Já Lisandra de Oliveira Sauer, professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), evidencia que os primeiros desafios para a equipe foram vencer o obstáculo da distância – o curso é 100% on-line – e definir metas realistas com as Mentorandas. Posteriormente, as reuniões começaram a produzir os frutos de uma parceria sólida entre as partes.
“Para ser Mentora, é importante ser mais humana do que super heroína e dividir experiências também falando das dificuldades encontradas no caminho. Os principais temas apontados pelas Mentorandas foram: confiança pessoal, oportunidades e caminhos na carreira de uma professora universitária de Matemática (extensão e pesquisa), inclusão universitária: como ministrar aulas para surdos e como fazer projeto de extensão no tema, apontamentos sobre chefias de departamento e coordenação de cursos e administração do tempo. A carreira da pesquisadora possui várias demandas que percebemos como algo da própria profissão, como compartilhamos com outras mulheres na mesma situação. Passamos a enxergar o labirinto de cristal e o teto de vidro que até então consideramos apenas algo isolado”, observa a professora de Matemática da UFPel.

Uma das Mentoras mais ativas de 2023 para cá, Lisandra também precisou pedir ajuda sobre as diretrizes do Programa de Mentorias para Mulheres e vê que a troca entre as participantes é muito rica visando o crescimento profissional.
“Não havia passado por essa experiência, mas com a formação de redes com as colegas, sempre há uma mulher mais experiente, e não necessariamente mais velha, para ajudar. Daí a importância de espaços de trocas entre as mentoras. É bem gratificante acompanhar a evolução do programa, tanto de nós, Mentoras, como das Mentorandas. Para mim, propiciou uma reflexão sobre a minha própria carreira, detectando pontos fracos e fortes. Através dos momentos de compartilhamento obtive uma nova perspectiva sobre práticas rotineiras, esses momentos também serviram para estreitar laços. É muito bom ter com quem trocar experiências”, completa a matemática, especialista na área de Geometria Diferencial.
Expectativas para a sequência do Programa de Mentorias para Mulheres
Mesmo na coordenação do programa pela SBM, Valéria se viu, em vários momentos, desempenhando o papel de acolhedora para jovens Mentorandas, que sofriam com preconceitos dentro da universidade.
“Elas buscavam apoio no programa. Durante a graduação ou em algum momento, muitas ouviam que não serviam para Matemática por serem mulheres, por serem negras, de periferia ou serem qualquer outra coisa que se possa imaginar. De repente, o orientador corta a bolsa dela e começa a assediá-la moralmente. Daí se desenvolve todo um problema psíquico. Porque as pessoas compram essa ideia e nem têm consciência disso. E isso impede com que elas cresçam, porque se bloqueiam, se sabotam”, mostra a professora da UEM.
Para 2025 e 2026, a expectativa da organização é que a união das químicas com matemáticas e físicas consolide o Programa de Mentorias para Mulheres em locais que ainda não foram atingidos pelos seus benefícios.

“Com o apoio de SBM, SBF e SBQ, estruturamos o edital de uma forma mais interessante, pois nós observamos algumas particularidades que não tinham sido previstas no edital anterior para tornar o programa ainda mais bacana. Tudo para assegurar a essa Mentoranda que ela não está sozinha nessa luta”, declara Valéria.
O Programa de Mentorias para Mulheres SBM/SBF/SBQ já está com inscrições abertas no site oficial. Ele está disponível para todas as selecionadas em qualquer região por seu caráter virtual e gratuito e é estruturado de forma que podemos contar com o desenvolvimento na carreira das Mentorandas de forma contínua.
SBM, SBF e SBQ já organizam os próximos encontros entre Mentoras e Mentorandas. O segundo está confirmado para ocorrer em outubro na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), enquanto que o seguinte está previsto para o segundo semestre de 2026.
Como a Mentora Lisandra de Oliveira Sauer, da UFPel, afirma: “você não precisa estar no auge da carreira para contribuir. Você precisa estar disponível algumas horas para ouvir e compartilhar sua experiência”.
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