Jovens pesquisadoras desfrutaram da mentoria para galgar destaques em suas respectivas áreas de STEM, superando uma leva de desafios pelo caminho

O assédio moral ainda tão enraizado em um ambiente prioritariamente machista é uma barreira significativa que dificulta a trajetória de mulheres cientistas na carreira acadêmica. O fenômeno acaba gerando, consequentemente, insegurança, medo, desconforto e baixa autoestima, o que afeta diretamente a saúde mental e emocional das jovens pesquisadoras.
Entre tantos obstáculos frequentes na rotina das jovens estudantes em ciência, as Sociedades Brasileiras de Matemática (SBM) e de Física (SBF) seguem erguendo a bandeira da resistência com o Programa de Mentorias para Mulheres. Em 2025, a Sociedade Brasileira de Química (SBQ) se juntou à iniciativa que entra na sua 2ª edição, com destaque para a interação entre Mentoras e Mentorandas como forma de empoderar a nova geração de pesquisadoras a enfrentar os vários desafios na carreira acadêmica.
O projeto nasceu em 2023 e conseguiu auxiliar dezenas de mulheres a superarem percalços na busca por uma maior igualdade de gênero na ciência, na reivindicação de direitos dentro da profissão e na criação de um ambiente menos tóxico. Agora, com a entrada de químicas no processo, as mulheres esperam potencializar seu grau de influência na área.
Integrante da Diretoria da SBM, Valéria Neves Domingos Cavalcanti é a atual Coordenadora da ação. Durante os primeiros dois anos, a professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM) ficou encarregada de se reunir com Mentoras e Mentorandas a cada dois meses exatamente para ouvir os relatos do relacionamento das duplas, as impressões sobre o projeto e os passos seguintes do processo. Assim, foi possível oferecer suporte a ambos os lados e concretizar uma relação mais harmônica com os propósitos da iniciativa.
Para ela, as Mentorandas tiveram um papel fundamental para o sucesso na 1ª edição pelas demandas que traziam às reuniões com suas respectivas Mentoras. Além disso, Valéria revela que pôde também ouvi-las nas reuniões realizadas à distância, onde expunham as suas queixas originárias do dia a dia no ambiente acadêmico.
“O sucesso, obviamente, dependia da interação da dupla Mentoranda/Mentora. Mas as Mentorandas vinham com tanta energia, com tantas demandas, com tantos anseios, porque são jovens e o sistema não é simples”, reconhece a Coordenadora.
“Mesmo em um ambiente acadêmico, muitas mulheres convivem com problemas ligados à desigualdade de gênero. Foram vários orientadores que usaram de sua autoridade para prejudicá-las, como, por exemplo, em casos de maternidade. Nesses casos, nem sempre o professor acolhe a sua orientanda e dá continuidade a orientação durante a gravidez. Existem, ainda, casos em que a gravidez era motivo para a aluna perder a bolsa. Então, elas vinham com demandas muito pertinentes e, junto com as suas Mentoras, dávamos todo o apoio e carinho para minimizar um possível dano psicológico”, conta Valéria.
Do Espírito Santo para a vida: os traumas deixados para trás por Bruna Dayana Ramos
Bruna Dayana Ramos foi uma das várias Mentorandas da iniciativa da SBF/SBM/SBQ e se identificou com a realidade exposta por Valéria. Em 2007, Bruna estava no segundo ano de seu Doutorado na USP São Carlos, mas não o finalizou.
“Eu engravidei naquele ano e perdi a bolsa de Doutorado na época. Ainda não existia essa regulamentação de Licença-Maternidade para bolsistas, então meu orientador, na época, acabou suspendendo a minha bolsa. Daí, acabei abandonando o Doutorado na época”, confirma a capixaba, natural de Vitória.
O episódio gerou traumas psicológicos em Bruna, porém, em 2020, ela retomou o Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coincidentemente, sua tese foi baseada em sua trajetória de forma a avaliar as mudanças na realidade das mulheres no curso de Física. “Quando engravidei, vi que a situação para as mulheres da Física não tinha mudado muito ao longo do tempo. Então, resolvi estudar isso dentro do ensino de Física, mas estudar a questão das mulheres, como o que elas passam afeta na forma como elas se veem, como físicas, como profissionais da área”, explana ela, que se tornou doutora em dezembro de 2024.

Foi durante o período do Doutorado que se sentiu estimulada a se inscrever no Programa de Mentorias para Mulheres. “Como eu já estava estudando o tema, eu vi essa proposta de mentoria no e-mail da SBF. Meio por acaso, porque recebo os e-mails da SBF e vi que estava sendo lançado o primeiro edital do programa. Li e pensei: ‘Ah, vou tentar’. Não imaginava que seria selecionada, porque já tinha 40 anos”, admite Bruna.
Por anos, a física capixaba precisou lidar com o trauma da negligência e a falta de apoio institucional em meio à sua empreitada acadêmica. Mas o Programa de Mentorias foi uma forma de ‘exorcizar seus demônios’ e, finalmente, superar o passado sob a mentoria da professora Rozane de Fátima Turchiello Gomez, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
“Foi importante para mim, porque ainda carregava aquele trauma e estava com medo de fracassar. Eu seguia me culpando por coisas que tinham acontecido no passado, apesar de não ter sido culpa minha. Então, eu achei que participar do programa me fortaleceria e tinha tudo a ver com o que eu estava estudando também”, lembra a professora de Física, que também possui Licenciatura em Matemática.
Bruna também é colaboradora voluntária em projetos de extensão na UFRJ e na Universidade Federal Fluminense (UFF) e admite que a experiência de conviver com colegas de carreira que enfrentaram parte dos mesmos obstáculos foi fundamental para não desistir dos seus sonhos. Além disso, o apoio de Rozane na mentoria permitiu a capixaba encontrar mais uma referência nos rumos da profissão.
“Gostaria que todas as mulheres tivessem esse tipo de mentoria feita por mulheres, como ocorre no programa. É completamente diferente a visão de uma mulher que passou por essas situações e que enfrenta as mesmas dificuldades, porque nos sentimos mais seguras e confiantes para abrir nosso coração, desabafar nossas questões com mulheres, pois o ambiente na Física, na Matemática, na Química ainda é dominado por homens. Então, quando encontramos mulheres em quem conseguimos nos espelhar e nos sentirmos mais à vontade, elas conseguem passar essa segurança, essa confiança e de um jeito que eu acho que só entre mulheres a gente consegue ter”, analisa a pesquisadora.
De Alagoas para o IFUSP: a autonomia de Mayra Albuquerque
A entrada no Programa de Mentorias também foi uma espécie de ‘válvula de escape’ para Mayra Albuquerque, aluna de Doutorado do Instituto de Física da USP (IFUSP). Natural de Arapiraca, em Alagoas, ela descobriu a vocação para ser cientista na capital Maceió, onde se formou em Física pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), em 2020.
Foram anos decisivos na capital alagoana, onde criou raízes, que criaram sua base acadêmica para seguir na pós-graduação. Mayra havia acabado de concluir seu Mestrado no IFUSP, em 2022, porém ainda se considerava insatisfeita com o rumo de sua vida.

Foi neste ínterim que as redes sociais da SBF e da SBM indicaram o Programa de Mentorias, o que a ajudou a recalcular sua rota. E a parceria com a professora Nathália Tomazio, do IFUSP – e que se tornaria sua Mentora – facilitou ainda mais para que Mayra se tornasse uma das Mentorandas mais ativas da iniciativa.
“Minhas conversas com minha Mentora giraram primeiro em torno de nos conhecer e, depois, trabalhar minhas insatisfações. Com ela e com nossas conversas, fui tendo forças para bancar as minhas decisões sobre o que fazer para mudar minha realidade. Foi assim que eu decidi trocar de orientador e de área de pesquisa e dar uma 2ª chance para o Doutorado”, detalha Mayra, natural de Arapiraca, em Alagoas.
A física procurou aproveitar todos os benefícios de um intercâmbio riquíssimo de experiências com outras colegas, Dentre tantos assuntos trabalhados nas reuniões e atividades do Programa de Mentorias, ela se impressionou com a forma como foi acolhida pelas outras participantes e também pela Coordenação da iniciativa.
“Na academia, é muito difícil encontrar acolhimento. Você sente como se sua presença ali fosse desnecessária ou até mesmo indesejada. Programas como esse são capazes de trazer nova luz e perspectivas aos problemas que antes pareciam individuais, mas que, na verdade, são, infelizmente, estruturais. Mas, uma vez sabendo que o problema é estrutural e unida a outras jovens cientistas, você se torna capaz de encarar as dificuldades, tendo uma rede de apoio e escuta. Um programa como esse nos ‘autoriza’ a sonhar e perseguir sonhos diferentes do que normalmente são esperados das mulheres”, opina a alagoana, que hoje trabalha no Laboratório de Arqueometria e Ciências Aplicadas ao Patrimônio Cultural (LACAPC) do IFUSP.
Da Colômbia para o Brasil: o empoderamento de Adriana Juzga León
Também em 2022, após participar do Treinamento Mulheres em Tech – Lideranças Inclusivas, iniciativa da SBM com a British Council, focada para pesquisadoras das áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM, sigla em inglês), Adriana Juzga León ficou sabendo por um colega do edital para o programa.
A colombiana, então, fez sua inscrição e, posteriormente, foi uma das selecionadas. “Gosto sempre de ressaltar que o edital chegou até mim por meio desse colega, pois é fundamental visibilizar como todos podemos ter um papel ativo nessas iniciativas — divulgando, motivando os outros e, nós, mulheres, nos engajando”, reconhece a matemática, radicada no Brasil há anos.

Durante sua participação no Programa de Mentoria, Adriana destaca o entrosamento quase que instantâneo com a professora Lisandra de Oliveira Sauer, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), para iniciar o processo com o pé direito. “Logo no início, ela me aplicou um questionário e, a partir das minhas respostas, traçou comigo um plano de trabalho personalizado, alinhado aos meus interesses e objetivos. Entre os principais focos, destacamos práticas de pesquisa, escrita de projetos, engajamento em ações de extensão vinculadas à minha prática docente, autocuidado e fortalecimento da confiança pessoal. Nosso trabalho fluiu de forma muito natural”, destaca.
Desde 2023, Adriana é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na Faculdade de Formação de Professores, localizada em São Gonçalo. Até hoje, ela relembra os momentos em que pôde trocar suas experiências com Lisandra e que originaram um intercâmbio com mais participantes do projeto, de forma a fortalecer a sororidade do grupo.
“Tivemos acesso a palestras sobre oportunidades acadêmicas, temas relacionados à saúde mental e, principalmente, participamos de encontros que se tornaram, para muitas de nós, um espaço seguro de troca. Programas como este são de vital importância, pois, além de serem inspiradores ao nos apresentarem as trajetórias de tantas mulheres, também nos oferecem uma visão mais humana dessas profissionais, revelando os desafios que enfrentaram para alcançar posições consolidadas em suas carreiras”, reforça a matemática.
Do interior da Bahia para o mercado: a experiência enriquecedora de Andréa Lins
Desenvolvedora de Software Sênior na empresa Deep Seed Solutions, Andréa Lins teve contato com o edital do Programa de Mentorias também via e-mail. Ela fazia seu Pós-Doutorado no Departamento de Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) quando resolveu se candidatar, exatamente por gostar da proposta exclusiva para o público feminino.
“Esse programa é muito importante para as jovens mulheres cientistas, pois nele temos a certeza de que não estamos sozinhas. Eu participei das palestras e dos encontros com as Mentorandas que aconteciam de forma remota. Também participei do Encontro Presencial, no qual ministrei o minicurso de Introdução à Programação com o Python”, revela ela, fazendo alusão ao I Workshop da SBM de Mulheres na Matemática, realizado na UEM, em 2024.

Participante da 1ª edição do projeto, a baiana de Inhambupe – graduada em Matemática na UFF – reconhece que a variedade de atividades e temas discutidos a fizeram ‘abrir a mente’ e perceber que a luta feminina na ciência prevê enfrentar desafios muitas vezes invisíveis.
“Pude conhecer mulheres incríveis que passaram por tudo o que passei, ou até mais ainda, mas que ainda assim não desanimaram e estão apoiando outras mulheres para que elas também não desanimem. Também pude debater sobre diversas questões envolvendo mulheres que acontecem no meio acadêmico e nos ambientes de trabalho em geral, especialmente na área de STEM, os quais são predominantemente masculinos. Temas como desenvolvimento profissional, maternidade e carreira, assédio e saúde mental são bastante pertinentes com a proposta do Programa de Mentorias”, completa Andréa.
Mentorandas aprovaram a primeira edição do Programa
Em dois anos, a primeira edição colheu os frutos de um edital completo e multiplural, o qual ofereceu acolhimento e estrutura para auxiliar todas as Mentorandas, quaisquer que fossem suas demandas, sejam da área de Matemática ou Física. Agora, com o acréscimo de mulheres de Química, Valéria crê que os pontos fortes do Programa de Mentorias tendem a aumentar para as selecionadas do biênio 2025-2026.
“Pelos relatos das Mentorandas, o programa foi de uma execução de absoluto sucesso. A grande maioria comentou a importância de se sentir acolhida, de poderem se abrir e não serem julgadas, e tudo isso à distância. Nosso elo se tornou muito forte durante o programa e isso criou um pacto: temos certeza do quão maravilhosas somos e que ninguém tem o direito de falar que não somos capazes. Esse pensamento e essa forma de agir são vitais para o empoderamento dessas mulheres. E é o que queremos também seguir na prática nesta 2ª edição”, conclui a Coordenadora do Programa de Mentorias SBF/SBM/SBQ.
A divulgação das selecionadas para a 2ª edição do Programa de Mentorias será feita no próximo dia 16 de abril pelos sites da SBM, SBF e SBQ. Ao todo, serão 40 pesquisadoras selecionadas pelo edital, sendo 10 vagas na área de Matemática, 10 de Física, 10 de Química e 10 para Mentorandas nas demais áreas de STEM.
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